Entrevista com o fonoaudiólogo Dr. Jaime Zorzi, para a Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp)
Por Andrea Racy e Patricia Vieira
Data não informada na fonte.
"Raramente presenciamos um real esforço de engajamento, no
sentido de a escola procurar ajustar seu programa às necessidades ou
características da criança com dificuldade de aprendizagem. Pelo
contrário: espera-se que ela alcance condições para acompanhar o
programa, tal e qual ele foi concebido, sem modificações. Muitas
vezes, quando isto não acontece, vem a ameaça de reprovação, o
questionamento a respeito da qualidade do atendimento terapêutico que a
criança está recebendo ou a busca de novas explicações, também
extra-escolares, via encaminhamento a novos profissionais." (Zorzi)
O que é o aprender e como se aprende?
Aprender é
transformar, no sentido de modificar, estender e ampliar, continuamente,
as formas de agir, sentir e pensar. O aprender é inerente ao
funcionamento mental saudável. O mundo está cheio de desafios, em
todos os sentidos. Viver significa, a todo o momento, estar frente a
situações, em sua maior parte banais, nas quais velhos conhecimentos
podem não ser suficientes para responder ou resolver. Um conhecimento,
até então eficiente para diversas situações, deixa de funcionar.
Dizemos que há um desequilíbrio, um problema, ou assim por diante.
Superar esta situação implicará mudanças na forma antiga, implicará
uma reorganização de conhecimentos. O aprender, portanto, refere-se a
este processo de transformação, cujo resultado é algo novo, por mais
simples ou elementar que tal novidade possa ser. O que caracteriza o
aprender não é necessariamente o tamanho da mudança, o que nos levaria
a pensar no produto da aprendizagem, mas sim o fato de ter havido uma
transformação, qualquer que seja, o que nos leva a pensar no
processo.
Aprende-se a todo o momento, por razões variadas: posso precisar
aprender a como abrir uma fechadura para pegar um alimento que está
dentro de um armário, porque tenho fome ou, até mesmo, aprender a
abrir uma fechadura para compreender como ela funciona, por pura
curiosidade. Pode-se aprender, e muito, por conta própria, como se a
inteligência precisasse, continuamente, se auto-alimentar. Por outro
lado, também é possível aprender, e sabemos o quanto, por meio do
outro, através da ação social. É neste contexto que podemos enquadrar o
papel da família, da escola e o nosso próprio.
Falamos, nestes casos, de mediadores, ou seja, daqueles que podem
propor e conduzir transformações no conhecimento. Podem existir boas
ou más mediações. Se acreditarmos que aprender corresponde
simplesmente a levar o aprendiz a memorizar conteúdos, saber repetir o
que o outro diz, sair-se bem em provas ou testes estaremos, a meu
ver, no plano das mediações ineficazes, se é que podemos falar em
mediação nestes casos. Por outro lado, se acreditarmos que aprender
significa atribuir ao aprendiz um papel de autoria na produção de
conhecimentos, caberá ao mediador propor temas ou desafios, assim como
dar as informações necessárias, que conduzam, tanto do ponto de vista
cognitivo quanto afetivo, o sujeito a investir na formação de novos
conhecimentos. Neste caso, o aprender não será medido necessariamente
pela quantidade de conhecimentos resultantes, mas sim pelo fato de
poder haver mudanças na forma inicial de agir ou pensar.
Nesta perspectiva fica difícil falar em certo ou errado. Se o sujeito
está agindo frente a um problema de acordo com o limite de compreensão
que ele pode ter da situação, naquele momento, onde está o erro?
Limite de compreensão em um determinado momento não significa erro ou
não aprender. Cabe ao mediador propiciar novas oportunidades, prover
novas informações e estratégias para que o sujeito possa caminhar mais
um pouco na direção de conhecimentos mais consistentes ou
aprofundados sobre o problema em questão. Daí ser apropriado falar em
termos da construção de conhecimentos.
O erro, elemento também inerente ao aprender, tem sido, infelizmente
tomado como parâmetro do aprendizado. Avaliamos pelo negativo,
julgamos pelo não saber. Ele não é tolerado: sabe-se ou não.
Deveríamos compreender que há muitos saberes e que o aprender é um
processo sem fim: sempre estaremos a meio caminho de qualquer
conhecimento.
Fale-nos um pouco sobre o
desenvolvimento infantil, as aprendizagens, a aprendizagem da
linguagem e a aprendizagem da língua escrita.
Colocarei o enfoque em
alguns aspectos da aprendizagem da linguagem oral e escrita e, neste
sentido chamo a atenção para uma diferença fundamental entre elas e
que costuma passar desapercebida. Aprender a falar faz parte de nossa
herança biológica, hereditária. Podemos afirmar que o homem,
independentemente de raça, cultura, sexo, cor, condições sociais,
econômicas ou geográficas, nasce para falar. Não se têm notícias a
respeito de sociedades ou grupos humanos que não dominem alguma forma
de linguagem oral. A capacidade de desenvolver linguagem oral é uma
característica universal da humanidade, desde tempos muito remotos,
resultado da evolução do homem ao longo dos tempos e que o diferencia
de outras espécies. Não encontramos referência, na História, da
existência de algum grupo social que não dominasse uma língua falada.
Cabe também chamar a atenção para as hipóteses de Chomsky a respeito
dos "universais da linguagem" ou seja, apesar das diferenças aparentes
que as línguas possam apresentar entre si, há certos aspectos
estruturais que são encontrados em todas elas.
Se, por um lado, podemos afirmar que todos nós já nascemos com uma
espécie de programação hereditária
que nos permite adquirir a língua
do meio em que vivemos num período significativamente curto de tempo, o
mesmo não ocorre em relação à linguagem escrita. A aprendizagem da
língua escrita não é uma herança biológica mas, sim cultural. Existem
sociedades que escrevem e outras que não escrevem, embora todas tenham
a língua oral. Isto quer dizer que a língua escrita é uma criação
social, relativamente recente se pensarmos em termos da evolução humana.
Diferentemente da transmissão hereditária, que é o caso da linguagem
oral, a escrita é um produto da cultura que só se transmite pelo
ensino, ou seja, em geral por meio de uma intervenção social planejada
para tal fim.
Para aprender a linguagem oral, basta a criança conviver com
falantes da língua. Não fazemos programas de ensino para que os bebês
aprendam a falar. O dia a dia dos bebês em suas casas, sendo cuidados
por seus pais ou por outras pessoas, propicia condições naturais e
espontâneas para que muitos deles, já por volta de seu primeiro
aniversário, comecem a usar as primeiras palavras. E espera-se que
assim seja, isto é, há uma expectativa de que entre um e dois anos as
crianças iniciem a falar. Ausência de linguagem após esse período ou
uma evolução muito lenta, pode estar indicando problemas por não ser
essa a tendência natural do desenvolvimento infantil.
No que se refere à escrita, para poder dominá-la, a criança
necessitará viver em uma sociedade letrada ou, mais especificamente,
fazer parte de algum segmento da sociedade que tenha acesso ao
letramento. O analfabetismo nada mais é do que a falta de
oportunidades que as pessoas têm para aprender a ler e escrever numa
sociedade letrada. Não utilizamos o termo analfabeto para nos
referirmos a sociedades que não têm escrita: falamos em sociedades
oralizadas, que não possuem sistemas de representação escrita.
Desta forma, podemos compreender porque crianças que foram capazes de
adquirir linguagem oral e que a dominam de forma eficiente, podem não
vir aprender a escrever. Essa aprendizagem não depende, simplesmente,
de habilidades individuais. Ela está submetida também, e em alto grau,
a condições sociais e educacionais, que podem, se não forem
suficientemente favoráveis e apropriadas, torná-la analfabeta ou
oferecer-lhe um domínio muito precário da língua escrita.
Qual a função social da escrita? Exemplifique.
Ler e escrever são
atos sociais significativos. Como tal, estas ações têm usos e funções
muito variáveis na sociedade. Escrever não se limita a traçar letras que
representam sons e palavras e tampouco a leitura está restrita a
decodificar os sons que as letras representam. Um bilhete, por
exemplo, pode estar informando que uma determinada pessoa ligou em
determinada hora, assim como pode estar servindo para convidar alguém
para um encontro. Um contrato pode ter a função de estipular,
detalhadamente, as condições para uma transação comercial e todas as
suas conseqüências caso não seja cumprido. O estatuto de um clube serve
para estabelecer as condutas que são esperadas por parte de seus
associados. Um livro pode ser usado como fonte de aprendizagem ou de
lazer. Um carnê para pagamento bancário significa um compromisso
financeiro assumido e que deve ser cumprido.
Portanto, ler e escrever são conhecimentos que não podem ser reduzidos
a alguns de seus aspectos como dominar letras, decodificá-las,
traçá-las ou, o que é pior, a um exercício acadêmico: escrever para
aprender as regras da escrita. Seu aprendizado implica, acima de tudo,
conhecer as várias funções que a linguagem escrita pode ter em termos
sociais, as muitas e variadas formas como pode ser usada. Todo o
escrito tem uma intenção, procura produzir efeitos: solicitar,
intimar, convencer, informar, agredir, aproximar, mostrar afetos e
assim por diante. Isto também quer dizer que, como elemento que contém
significados, a escrita pode ser interpretada de muitas formas, ou em
diferentes graus. É esta compreensão que motiva a busca das formas
apropriadas e "corretas" de se escrever, e não o contrário.
O que é o processo de generalização de conhecimentos?
Via de regra, a toda
hora aprendemos coisas novas em situações particulares. Por exemplo,
uma criança pequena, que está iniciando a aquisição da linguagem, pode
aprender a dizer "bola" para a bola que ganhou de sua mãe, repetindo o
nome que passa a ouvir. Podemos dizer que houve uma aprendizagem: ela
agora é capaz de dar um nome à sua bola. Porém, tal aprendizagem deixa
de se restringir a tal bola, como objeto particular, e passa também a
ser aplicada, pela criança, a outras bolas, de tamanhos e cores
diferentes. Dizemos que houve uma generalização. Mas a criança não
para ai. Ela começa a chamar uma série de objetos redondos como
"bola". Isto nos faz pensar que ela está assimilando os objetos entre
si, levando em consideração a forma dos mesmos e gerando uma espécie
de regra classificatória: o que é redondo é bola. Este é um processo
generalizador, indício de uma boa condição de aprendizagem.
Devemos, porém, caminhar mais um pouco e falar no processo de
diferenciação. Quando a criança chama a lua, as laranjas e outros
objetos redondos de "bola", provavelmente irá ouvir, por parte de seus
pais algo como "Isso não é a bola, é a lua" ou, "Isso não é bola, é
laranja", e assim por diante. Desta forma, certas restrições começam a
ser apontadas, conduzindo a criança a um procedimento de discriminação
mais refinada: nem tudo o que é redondo é bola.
Fatos como estes podem ser facilmente observados na aprendizagem da
ortografia. Ao descobrir que palavras pronunciadas com "u" no final,
como "papel", são escritas com a letra "l", a criança pode vir a
generalizar esta descoberta a todas as palavras que ela pronuncia com
"u" final, grafando-as com o "l": "chapel"; "andol" e daí por diante.
Como se dá a apropriação do sistema ortográfico?
Traçar uma possível
progressão evolutiva no aprendizado da ortografia parece viável na
medida em que tal aprendizagem não se dá de modo linear, uma vez que há
uma dependência das características da própria língua escrita, as
quais podem apresentar maior ou menor grau de complexidade. Isto
significa uma apropriação progressiva, sendo alguns aspectos mais
facilmente assimilados enquanto que outros exigem muito mais tempo e
conhecimentos para que venham a se tornar mais claros e mais
plenamente dominados. Levando-se em consideração a freqüência de
ocorrência de cada tipo de erro em cada uma das séries, a média de erros
para cada tipo de alteração e, fato importante, o número de crianças
em cada série produzindo os distintos tipos de erros, pode-se chegar a
uma visão objetiva de quais são os maiores e os menores obstáculos a
serem superados pela criança no seu processo de apropriação da
escrita.
Pode-se afirmar que aprender a escrever implica compreender uma
série de propriedades ou aspectos da língua escrita que fazem parte do
sistema ortográfico. Entre estes aspectos podemos citar, a título de
ilustração, a diferenciação entre o traçado das letras, conhecer a que
sons elas correspondem, estabelecer correspondências quantitativas,
identificar a posição da letra dentro da palavra, compreender que a
palavra pode ser falada de uma forma e escrita de outra, compreender que
uma mesma letra pode representar vários sons, assim como um mesmo som
pode ser representado por diversas letras.
A complexidade de alguns destes aspectos da língua escrita fica
explicitada quando se leva em conta o modo como as crianças vão,
progressivamente, concebendo a ortografia. Assim sendo, podemos
verificar que, quanto maior for o número de erros de um determinado
tipo, quanto maior for a média de tais erros, assim como quanto maior o
número de crianças que os produzem, maior deverá ser a complexidade
lingüística a ser dominada. A não compreensão dos aspectos em questão,
a compreensão somente parcial ou a não sistematização do conhecimento
envolvido irá manifestar-se na forma de alterações ou erros. Ainda,
considerando-se que a ocorrência de tais erros pode ter uma duração
variável, ou seja, pode continuar ou não aparecendo na medida em que
as séries avançam, encontramos condições favoráveis para construir uma
espécie de ordem hierárquica nas aprendizagens. Isto quer dizer que,
alguns aspectos, de maior complexidade, serão dominados mais tarde
enquanto que outros aspectos, mais simples, serão compreendidos em
momentos mais iniciais do processo de apropriação da escrita.
Qual a contribuição da leitura para o processo de escrita?
A leitura pode
contribuir de muitas formas para o processo da leitura. Por meio dela
podemos ter acesso a idéias, imagens, estilos, formas de narrar, a um
novo vocabulário, às normas da gramática e assim por diante. É uma
grande fonte de aprendizagem, em todos os sentidos. Entretanto,
gostaria de falar especificamente sobre uma experiência que realizamos
tendo em vista que tem sido apontada uma relação entre freqüência de
leitura e ortografia, acreditando-se que, para escrever bem a criança
deva ler muito. Contrariando tal crença, muitas crianças têm mostrado
que esta relação não parece tão automática. Algumas lêem ativamente e,
mesmo assim, apresentam dificuldades para escrever palavras. Por
outro lado, crianças consideradas como leitoras pouco ativas têm
revelado uma boa habilidade em termos ortográficos.
A fim de estudar possíveis relações entre o perfil de leitor,
definido a partir de hábitos de leitura, e a aprendizagem da
ortografia, procuramos verificar se leitores ativos escrevem de forma
mais correta e, inversamente, se crianças que lêem pouco não conseguem
memorizar apropriadamente a forma gráfica das palavras. Para tanto,
pesquisamos 268 crianças de primeira a quarta série primária, de duas
escolas da rede privada de São Paulo-SP.
Conseguimos identificar três diferentes níveis de envolvimento com a
leitura, o que caracterizou o perfil de Leitor Muito Ativo, Leitor
Ativo e Leitor Pouco Ativo. Com relação ao aprendizado da ortografia,
foi possível caracterizar três perfis: Alto Domínio da Ortografia,
Médio Domínio e Baixo Domínio. Pode-se encontrar, Leitores Muito
Ativos que mostram um baixo domínio em termos de ortografia, assim
como o inverso, ou seja, Leitores Pouco Ativos com Alto Domínio de
Ortografia. Estes fatos permitem afirmar que não basta simplesmente
ler muito para aprender a ortografia uma vez que a memorização das
palavras escritas não se dá automaticamente pela simples visão, mesmo
que constante, das palavras. Ler muito, embora tenha uma correlação
positiva com escrever bem, pode não ser uma atividade suficiente para
garantir o domínio da ortografia. Temos também que pensar no valor que
a criança dá para a escrita o que, de fato, pode determinar uma maior
ou menor preocupação com o "escrever bem".
O que são habilidades lingüísticas?
A linguagem pode ser
dividida em vários aspectos: pragmáticos, formais ou gramaticais
(englobando o domínio morfossintático e o fonológico) e o semântico.
Quando falamos em habilidades lingüísticas, estamos nos referindo ao
domínio de tais aspectos que são progressivamente adquiridos ao longo
da vida. Não precisamos de "aulas" ou ensinamentos específicos para
desenvolver tais capacidades ou conhecimentos. Eles vão acontecendo ao
longo do desenvolvimento na medida em que o falante vive a língua em
que está inserido, e isto em situações reais de comunicação com os
outros. Esta aprendizagem dá-se praticamente de uma forma intuitiva,
com esses conhecimentos sendo construídos progressivamente e, muitas
vezes, sem que o sujeito tenha consciência de toda a complexidade
lingüística que emprega em sua comunicação. Pode-se falar, neste caso,
de habilidades ou conhecimentos "intuitivos", ou seja, o sujeito domina
regras dialógicas, gramaticais, fonológicas e semânticas, sem que,
necessariamente, saiba falar ou explicar as regras que usa.
Por outro lado, de modo diferente da linguagem falada, a linguagem
escrita exige um outro nível de competência ou habilidade que se
refere ao conhecimento denominado metalingüístico. Este conhecimento
implica a tomada de consciência de certos fatos da linguagem, como por
exemplo, a noção de fonema, de sílaba, de rima, de palavra, de
sentença, de entonação e assim por diante. Isto significa que a
escrita requer habilidades que saem do plano intuitivo e caminham para o
nível do conhecimento refletido. Algumas crianças, por exemplo, têm
grande facilidade para notar as semelhanças estruturais entre palavras
como "cadeira, madeira, torneira", ou seja, que todas elas contêm
"eira". Para tais crianças, fica muito fácil proceder a generalizações
quando descobrem, por exemplo, que embora essas palavras, na
linguagem oral, sejam pronunciadas como "cadera, madera e tornera",
quando são escritas há o acréscimo de um "i". Tal habilidade permite com
que palavras novas, mas que têm a mesma característica, venham a ser
escritas corretamente, embora a criança possa não tê-las visto
anteriormente. Outras não perceberão esta relação e aprenderão a
escrever as palavras uma a uma, sem conseguir generalizar o que
aprenderam com uma delas a outras que se encaixam na mesma categoria.
Quais são as questões fundamentais que fazem diferença entre os verdadeiros e falsos distúrbios de aprendizagem?
Algumas crianças podem
"não aprender", ou apresentar restrições neste sentido, porque
apresentam dificuldades ou distúrbios nos mecanismos ou processos
responsáveis pela aprendizagem. Diversas podem ser as razões, como
alterações de origem neurológica, distúrbios afetivos primários,
deficiência mental e assim por diante. Mesmo vivendo situações
propícias para a aprendizagem, faltam-lhes recursos para assimilar, de
modo apropriado, a estimulação que está sendo oferecida. Por outro
lado, podemos encontrar crianças, e não são poucas, que, embora não
apresentem dificuldades ou distúrbios naqueles processos que devem dar
conta da aprendizagem, são tidas como de baixo rendimento, como
portadoras de distúrbios. Porém, uma análise um pouco mais cuidadosa, e
menos preconceituosa, poderá revelar que existe uma diferença entre
dificuldade para aprender e falta de oportunidade para tanto. Chamamos
de falsos distúrbios de aprendizagem os diagnósticos aplicados
àquelas crianças que, embora tenham condições gerais favoráveis para
aprender, faltaram-lhes, e por razões principalmente de ordem social e
econômica, oportunidades para viverem situações propícias para novas
aquisições, principalmente de caráter acadêmico.
Mais especificamente, temos que levar também em consideração, e de
modo muito mais crítico do que costumamos fazer, as oportunidades que
as crianças têm de vivenciar situações reais de leitura e de escrita
em contextos sociais variados. Podemos observar que a história de vida
de cada criança tem um peso significativo em seu processo de
aprendizagem da linguagem escrita.
Qual é o perfil das crianças que fazem o sucesso de qualquer método?
Tem se tornado cada
vez mais evidente que as condições que podem assegurar a aprendizagem
da língua escrita não se limitam, unicamente, a um conjunto de
habilidades consideradas de natureza pedagógica. Na realidade, a
linguagem escrita ganha sua dimensão e significados a partir dos usos e
funções a ela atribuídas. Desta forma, para compreender o que é ler e
escrever, para dominar seus mecanismos e tornar-se um usuário da
escrita, a criança precisa viver situações reais que lhe dêem o
verdadeiro sentido desta linguagem. O que se quer reforçar é o fato de
que a possibilidade de uma criança crescer e viver em um meio no qual
a língua escrita faz parte do dia a dia é um fator determinante do
sucesso de sua aprendizagem. Em outras palavras, ter a oportunidade de
viver ao lado de pessoas que lêem e escrevem, de modo que possa ir
compreendendo o como se escreve, o que se pode escrever, com que
objetivos se escreve, para quem se escreve, quais as situações em que
se escreve, o por que de se escrever, e o mesmo ocorrendo em relação à
leitura, garante a construção de um conjunto de conhecimentos que são
fundamentais para que a criança venha a tornar-se alguém que, de
fato, lê e escreve. Esse é, em linhas gerais, o perfil daquelas crianças
que, dado o grau de conhecimento e experiência que carregam para a
escola, costumam fazer o sucesso dos métodos pelos quais são
alfabetizadas. O grande desafio para os métodos são aquelas crianças
que não apresentam tal história ou percurso de vida porque são
provenientes de ambientes ou condições sociais que não propiciam tal
vivência. Nestes casos, elas se tornam praticamente dependentes
exclusivas da proposta metodológica para começarem a construir
conhecimentos mais consistentes a respeito da linguagem escrita.
Qual é a preparação das escolas no sentido de receber alunos que precisam de um olhar e um trabalho significativo?
Com poucas exceções,
as escolas, de um modo geral, não estão preparadas para receber alunos
com tais características. Costumo usar uma imagem para ilustrar esta
situação. Podemos dizer que as escolas estão mais na espera de colher
frutos do que de plantar a árvore. Vou explicar-me melhor. Se tomarmos
como referência àquelas crianças que, por felicidade, tiveram a
oportunidade de conviver, desde muito cedo, em um ambiente letrado e
com ele se envolver no sentido de assimilar conhecimentos deste tipo,
podemos dizer que, para tais crianças, uma semente foi plantada desde
quando elas eram muito jovens. Esta semente, aos poucos, brotou e foi
se transformando em uma árvore, graças ao adubo e à irrigação,
representados pelo meio propício ao aprendizado da escrita. Quando
esta criança chega para um processo formal de alfabetização, ela traz,
para a escola, uma árvore já formada, prestes a dar seus frutos. Cabe
à escola fazer a colheita. Para tanto, o sistema educacional funciona
bem. Caso contrário, quando recebe crianças que, por alguma razão,
não conseguiram uma semente para plantar, ou não tiveram uma adubagem e
irrigação suficientes para que ela germinasse e crescesse, as coisas
parecem funcionar de modo diferente. Neste caso, a escola vê-se na
contingência de plantar uma semente, aduba-la, irriga-la e ter que
esperar até que ela dê frutos, mas, para tanto, ela não está
preparada. Quero dizer, com isso, que aquelas crianças que chegam à
escola sem o conhecimento prévio que ela, via métodos propostos,
acredita que as crianças deveriam ter, acabam por produzir desajustes
ou desequilíbrios que caracterizam a exclusão e, muitas vezes, os
falsos distúrbios de aprendizagem: a criança não está preparada para
aprender. Como se não fosse o papel da escola garantir essa
aprendizagem! Em síntese, para finalizar diria que, uma vez tendo
aprendido a colher, chegou a hora de a escola aprender a plantar.
Como é visto a questão dos distúrbios de aprendizagem atualmente pelas escolas?
Infelizmente, tem sido
difícil constatar mudanças no modo como esta questão tem sido
concebida em termos escolares. Sistematicamente, ao longo dos anos,
tenho visto que, em geral, os distúrbios de aprendizagem são tidos como
problemas centrados na criança e/ou na família, cabendo à escola
detectar e encaminhar. Por outro lado, o compromisso com a "cura" ou
superação do problema, caberá ao profissional que recebeu a criança
para tratamento, quer seja o psicopedagogo, fonoaudiólogo, psicólogo
ou outro. Tendo chegado a este ponto, o papel da escola é o de,
preponderantemente, aguardar resultados e melhoras no desempenho
escolar. Raramente presenciamos um real esforço de engajamento, no
sentido de a escola procurar ajustar seu programa às necessidades ou
características da criança com dificuldade de aprendizagem. Pelo
contrário: espera-se que ela alcance condições para acompanhar o
programa, tal e qual ele foi concebido, sem modificações. Muitas
vezes, quando isto não acontece, vem a ameaça de reprovação, o
questionamento a respeito da qualidade do atendimento terapêutico que a
criança está recebendo ou a busca de novas explicações, também
extra-escolares, via encaminhamento a novos profissionais.
Gostaria de dizer que vejo, como algo inerente à ação de quem se
propõe a educar, o papel de procurar compreender o que é o aprender e o
não aprender. Mais que tudo, a obrigação de assumir, para si, o
desafio de ensinar, acreditando ser isso possível, aqueles para quem a
aprendizagem pode ser algo mais difícil. A escola deve ser, por
princípio, um local privilegiado para se aprender, qualquer que seja o
aprendiz.
Exemplifique um problema real de distúrbio de aprendizagem.
Os distúrbios de
aprendizagem podem ser considerados como uma categoria de problemas
que apresentam a seguinte configuração: "Uma alteração em um ou mais
dos processos psicológicos envolvidos na compreensão ou uso da
linguagem, falada ou escrita, que pode manifestar-se como uma
habilidade imperfeita para ouvir, pensar, falar, ler, escrever ou
realizar cálculos matemáticos..." (SILBER PSYCHOLOGICAL SERVICES,
l992). Como a própria definição aponta, os distúrbios de aprendizagem
dizem respeito a um conjunto de déficits associados que nos fazem
pensar não em problemas pontuais ou específicos, mas sim em alterações
evolutivas mais globais ou gerais. Desta forma, podemos pensar nos
distúrbios de aprendizagem, quando considerados na forma de um leque
de alterações, como a manifestação de um distúrbio global do
desenvolvimento, com graus de extensão e profundidade variáveis.
Podemos dividir o desenvolvimento em vários aspectos, como o
cognitivo, afetivo/social, comunicativo e motor. Quando encontramos
dois ou mais destes aspectos alterados, podemos falar em distúrbios
mais globais do desenvolvimento.
Para exemplificarmos, podemos desenhar o seguinte quadro:
- Os distúrbios globais de desenvolvimento constituem uma classe
variada de problemas, como as deficiências mentais, o autismo e uma
série de outras alterações que podem vir a provocar distúrbios de
aprendizagem em graus diversos, dependendo da gravidade e da extensão
das dificuldades encontradas.
- Crianças com tais características tendem a evoluir no sentido de
virem a apresentar problemas gerais e variados em termos de aprendizagem
e linguagem, os quais podem vir a interferir no aprendizado da
leitura e da escrita e também no acompanhamento de todo o conteúdo
escolar, como no caso da matemática, ciências, história e assim por
diante.
- Dificuldades de linguagem oral e escrita podem estar presentes tanto no aspecto da compreensão quanto no da expressão.
-Distúrbios podem também estar evidenciados no plano social e afetivo.
Um caso real: M. foi encaminhado para um tratamento
fonoaudiológico por volta dos 3 anos de idade uma vez que, nesta idade,
ainda não fazia uso da linguagem verbal, limitando sua comunicação a
formas gestuais não simbólicas, principalmente gestos indicativos.
Pode-se constatar que apresentava dificuldades no plano do
desenvolvimento cognitivo, da linguagem, e até mesmo algumas
dificuldades do ponto de vista interativo e social. No caso desta
criança, o atraso na aquisição da linguagem estava ligado a um distúrbio
mais global do desenvolvimento, com significativa dificuldade do
ponto de vista cognitivo.
Progressivamente esta criança foi adquirindo uma
capacidade de fazer uso da linguagem verbal, chegando a atingir, por
volta dos 7 anos, uma comunicação relativamente eficiente para dar
conta dos fatos rotineiros, e sem alterações quanto ao aspecto da
articulação dos fonemas. Entretanto, algumas dificuldades eram mais
evidentes em termos de compreensão e expressão quando estavam
envolvidas noções mais complexas de tempo, espaço, causalidade e
quantidade. Para ele, era muito difícil organizar uma narrativa levando
em conta os aspectos lógicos e temporais necessários. Nesta idade, M.
ainda apresentava características tipicamente pré-operatórias e, em
termos de evolução do letramento, um nível de escrita típico de fase
pré-silábica. Em síntese, sua vida pré-escolar sempre foi marcada por
dificuldades na aprendizagem dos conteúdos escolares. Em geral, M.
participava do grupo das crianças mais novas, mesmo assim tendo certa
dificuldade em acompanhar as atividades por elas desenvolvidas.
O que são os distúrbios específicos de linguagem oral e como se caracterizam?
A dificuldade está
centrada principalmente na evolução da linguagem oral, na ausência de
perdas auditivas.
Há um comprometimento mais evidente na expressão
verbal do que na compreensão, podendo atingir o domínio morfossintático,
fonológico ou lexical. Por sua vez, outras áreas do desenvolvimento,
como os aspectos cognitivos, podem não se mostrar prejudicados ou não
justificam as dificuldades encontradas no plano da linguagem oral.
As seguintes características, incluindo uma tendência evolutiva,
podem ser observadas em muitas das crianças com este perfil:
- As dificuldades podem derivar para o plano da fala, caracterizando os chamados distúrbios articulatórios.
- Em alguns casos, apesar do aparente desenvolvimento das capacidades
comunicativas da criança, podem permanecer algumas limitações mais
sutis do ponto de vista lingüístico geral atingindo habilidades
discursivas, a aquisição de vocabulário e o domínio da sintaxe.
- Podem surgir dificuldades escolares, principalmente em relação ao
domínio da linguagem escrita, em decorrência das possíveis restrições
em termos de linguagem oral. Estas dificuldades quanto à leitura e
escrita, por sua vez, podem repercutir em outros conteúdos escolares.
Porém, nestes casos, tais dificuldades podem ser secundárias e não
primárias como nos distúrbios de aprendizagem mais gerais.
- Podem ser encontradas dificuldades também no plano social e afetivo derivadas das alterações da linguagem.
O que são os distúrbios específicos da linguagem escrita e como se caracterizam?
Podemos constatar
crianças que, embora não tenham apresentado quaisquer dificuldades
anteriores em termos de aprendizagem em geral ou quanto ao domínio da
linguagem oral, em particular, podem vir a enfrentar dificuldades,
específicas, em termos da aprendizagem da linguagem escrita. Este tipo
de problema irá caracterizar uma classe possível de alterações, as
quais podem ser definidas como distúrbios específicos da leitura e da
escrita. Isto significa que mecanismos responsáveis pelo processamento
de certos aspectos da escrita podem apresentar algum tipo de
alteração.
Para estas crianças, problemas de aprendizagem começam a surgir a
partir da alfabetização, podendo manifestar-se tanto em termos de
alterações na leitura como na escrita. Nestes casos, as limitações
parecem centradas em processos lingüísticos específicos da leitura e
da escrita, enquanto que a oralidade não revela alterações que, caso
existam, podem até mesmo passar desapercebidas. Dentre eles, são muito
comuns às dificuldades de ordem ortográfica. A compreensão de
leitura, por sua vez, pode estar também dificultada quando existem
problemas em relação à decodificação.
Dificuldades relativas à
consciência fonológica, à associação sons-letras, à criação de um
léxico visual que facilite o reconhecimento de palavras, as restrições
em compreender as semelhanças fonológicas, morfossintáticas e
semânticas entre as diferentes palavras, podem servir para ilustrar os
tipos de problemas encontrados nesta categoria de distúrbio.
O que são as dificuldades escolares e como se caracterizam?
Creio que o termo
"dificuldades escolares" pode ser entendido como uma ideia genérica
que expressa a existência de problemas variados em relação ao desempenho
escolar do aprendiz. Ou seja, a criança não está aprendendo
adequadamente. Por sua vez, muitas podem ser as razões que levam a
tais dificuldades: problemas metodológicos, falta de preparo adequado
de quem ensina, problemas de ordem familiar, ausência de motivação,
condições precárias de ensino, fatores sócio-econômicos adversos e,
entre tantas, mas não necessariamente sempre presentes, possíveis
limitações por parte de quem aprende. Em outras palavras, nem toda
dificuldade escolar corresponde a um distúrbio de aprendizagem.
Por
outro lado, quando falamos em distúrbios de aprendizagem há uma
referência, mais exata, a um transtorno ou déficit, com
características e graus variados, presentes no aprendiz. Isto quer
dizer que, mesmo em condições muito favoráveis, ele pode vir a
apresentar limitações em sua aprendizagem. Tendo em vista estas
diferentes razões para uma mesma manifestação, devemos ter cuidados para
distinguir as dificuldades escolares decorrentes dos verdadeiros
distúrbios de aprendizagem, daquelas que se originam de fatores mais
extrínsecos, mas que igualmente, podem limitar o desenvolvimento
escolar. Tais dificuldades, quando mal interpretadas, caracterizam o
que podemos denominar os falsos distúrbios de aprendizagem.