"Há muitas escolas - já foram feitas pesquisas sobre isso - em que as caixas do PNBE chegam e ficam trancadas num armário, porque não querem deixar que as crianças tenham livre acesso aos livros, com medo de que sejam rasgados, rabiscados, danificados".
Entrevista da Professora Magda Becker Soares, fundadora do Centro de Alfabetização,
Leitura e Escrita (CEALE), da Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Minas Gerais, para repórter Rubem Barros da Revista Educação, em agosto de 2011.
A professora resume, de forma direta, os conflitos que afligem muitos educadores
quanto à dimensão de aprendizagem da educação dos 0 aos 5 anos. Ou seja,
ela deve existir, porém de uma maneira particular, que valorize a
infância e os interesses da criança.
Como a senhora vê a questão do currículo na educação infantil, especialmente com relação ao contato com a escrita e a leitura?
Na
educação infantil, devemos enfrentar uma longa tradição de algo que
começou com o significativo nome de jardim da infância, com a ideia de
que a criança ficaria ali para desenvolver-se espontaneamente, com
pessoas que estariam ali apenas atentas ao que elas faziam. Esse é um
conceito errôneo de educação infantil, o conceito de que, nessa etapa,
não deve haver aprendizagem. Há, ainda hoje, quem rejeite que as
instituições voltadas a essa fase sejam chamadas de escolas. Na
realidade, essa fase representa o início da educação formal das
crianças. O que diferencia essa educação formal da educação familiar, e
também da educação que se dava em instituições, antes das novas
concepções de educação infantil? É que na educação infantil se formaliza
a educação da criança. E uma das maneiras de fazer isso é criando um
currículo que oriente a criança em sua progressiva inserção no mundo
social, no mundo da natureza, e propicie oportunidades para que ela
desenvolva linguagens, por meio de sua introdução no mundo da música, da
expressão corporal, das representações simbólicas e também no mundo da
escrita. É uma fase em que a criança está se desenvolvendo em várias
frentes, desde a motora, a do convívio social, da inserção cultural,
etc. A escola propicia o processo formal de inserção da criança na
sociedade e em sua cultura. E uma parte importante desse processo é a
introdução à escrita, ao mundo do impresso. Então é também o momento em
que a criança deve e pode ser introduzida no mundo do letramento.
Como as bibliotecas ou o livro devem estar presentes nessas escolas?
Esse
é um aspecto importante da introdução no mundo da escrita, que se faz
por diferentes meios. Um deles é o contato da criança com o material
escrito, com a língua escrita, e um lado fundamental disso é a criação
de um contexto de letramento, em que a criança conviva com material
escrito em suas várias formas e gêneros. Nesse contexto de letramento, a
biblioteca tem um papel fundamental, e essa é uma das barreiras que
devem ser vencidas na educação infantil. Por exemplo, no programa
ProInfância, em que o MEC oferece a planta para a construção de creches e
escolas de educação infantil nos municípios, essa planta vem
surpreendentemente sem espaço para biblioteca.
Isso não foi modificado?
Tive oportunidade de
levantar essa questão, mas não tive notícia de modificação. Sei que
algumas instituições que já estavam em construção, em municípios em que
as pessoas têm sensibilidade para essa questão, estão destinando alguma
parte da planta para biblioteca. Mas há resistências a isso. Aqui mesmo
em Belo Horizonte, incluir a biblioteca num programa de construção de
creches foi uma conquista bem recente, resultado da campanha que está
havendo no país todo para a formação de leitores. Por outro lado, para
lembrar um importante dado positivo, o Programa Nacional da Biblioteca
da Escola (PNBE), que até dois ou três anos atrás não incluía a educação
infantil, já está na segunda edição em que a educação infantil é
contemplada. E é interessante, porque num primeiro momento, o PNBE
incluiu a chamada pré-escola, crianças de 4 e 5 anos. Já agora, na
edição para 2012, incluiu-se também a creche, com livros para crianças
de 0 a 3 anos. Isso representa uma posição do próprio MEC de que a
criança deve ter contato com o livro desde a creche, e a escola deve
dispor de livros e de biblioteca para toda a faixa da educação infantil.
É uma concepção bem recente, que felizmente está se difundindo, embora
ainda haja grupos de resistência ao letramento e à alfabetização - o que
já é outra conversa - na educação infantil.
O que caracteriza os livros que estão sendo escolhidos pelo MEC para essa etapa da educação?
Isso
introduz um novo componente na nossa conversa, que são as editoras. As
editoras têm tido dificuldade em identificar o que é adequado para a
educação infantil, exatamente por falta de tradição nessa área. O PNBE
tem tido alguma dificuldade de constituir acervos para essa faixa
etária. Assim, enquanto as editoras inscrevem um número enorme de livros
para os ensinos médio e fundamental, a educação infantil, como também a
Educação de Jovens e Adultos, recebe um número bem menor de inscrições
de títulos. Isso mostra a pouca produção para essas faixas e o
conhecimento precário de editoras e autores sobre o tipo de livro que é
mais adequado para crianças que ainda não leem, que ainda não estão
alfabetizadas, mas que devem ser inseridas no mundo do livro, da
escrita, da literatura.
É curioso isso, pois temos uma tradição de literatura
infantojuvenil, inclusive com muitos livros apenas de imagens. Isso
ainda não está dialogando bem com o processo de seleção?
O
PNBE, como também o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), têm tido
uma influência muito positiva. Pelos critérios de seleção, as editoras
vão compreendendo o processo. Já percebo uma diferença do primeiro PNBE
destinado à educação infantil para este segundo. Há uma aproximação
maior do tipo de livro adequado para crianças nessa faixa etária.
Que papéis a literatura infantil pode desempenhar nesse primeiro contato das crianças
com as letras?
São
muitos. Primeiro, o próprio conhecimento do objeto livro, a
familiaridade com ele, o saber que objeto é esse, a possibilidade de
manipulá-lo. Essa é uma das questões que dificulta a produção para a
educação infantil, pois o livro deve ter algumas características
materiais adequadas à criança. Por exemplo, o ideal seria que as páginas
fossem cartonadas, para que o livro fosse resistente e crianças que
ainda não têm suficiente coordenação motora pudessem manipulá-lo.
Livros-brinquedo, livros pop-up, fascinam as crianças. Para a creche,
seriam importantes livros de pano. Mas essas alternativas tornam a
produção do livro difícil e sobretudo cara. Uma parte significativa dos
melhores livros para a educação infantil são títulos traduzidos de
outros países que não enfrentam as mesmas dificuldades econômicas que as
editoras daqui enfrentam. São livros muito caros, que acabam não sendo
inscritos no PNBE, pois o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE) compra os títulos a preços baixos. Então, não compensa para as
editoras inscrever livros de custo alto, pois não teriam condições de
vender esses livros para o MEC pelo preço que é proposto. Um outro
aspecto importante é que esses livros são traduzidos para o português
por contratos com editoras estrangeiras, a maioria da Europa e dos
Estados Unidos, e normalmente não é possível fazer uma edição específica
para vender ao governo. Em geral, são edições pequenas, fruto de
acordos com editoras de outros países, e isso acaba dificultando a
chegada desses títulos. Mas, aos poucos, estamos começando a produzir
livros adequados. Por exemplo, aumentou muito a produção do livro só de
imagens, sem texto, que é um tipo de livro importante para as crianças
pequenas, embora também seja importante o livro com imagens e pouco
texto. É importante também o livro com uma quantidade maior de texto e
ilustrado, que é o livro que a professora vai ler para a criança, uma
forma de leitura fundamental.
E quanto à organização da biblioteca infantil e dos espaços de leitura?
A
biblioteca infantil tem especificidades, desde aspectos miúdos, como a
maneira como os livros são expostos, não é uma biblioteca como qualquer
outra. Não se pode colocar os livros do mesmo modo como ficam numa
biblioteca para adultos ou jovens, em pé nas estantes, pois os livros
infantis não costumam ter lombada, são finos. Se eles ficam em pé na
estante, a criança não os identifica, pois não vê a capa, que é a grande
atração para ela. Então as estantes têm de permitir a exposição das
capas. Também não cabe fazer os registros de forma tradicional, com
fichas. Se elas forem usadas, é preciso que sejam mais icônicas, para
que a criança se habitue ao processo de tomar emprestado o livro,
levá-lo para casa e devolvê-lo. Ela tem de saber que o livro fica na
estante segundo uma certa classificação, mas não é a mesma classificação
da biblioteca de adultos. Pode ser por etiquetas coloridas, por
exemplo. Além disso, é preciso que haja também, na sala de aula, o
cantinho de leitura. A criança vai à biblioteca uma ou duas vezes por
semana, mas na sala de aula o contato com os livros deve ser diário. Já
tivemos, no PNBE, programas específicos para a constituição dos
cantinhos de leitura, para que a criança tivesse acesso aos livros
dentro da sala de aula.
Isso aumenta a exposição da criança ao livro?
São
fundamentais muitas atividades com os livros, muita leitura de
histórias pelas professoras e muito manuseio dos livros pelas crianças.
Há muitas escolas - já foram feitas pesquisas sobre isso - em que as
caixas do PNBE chegam e ficam trancadas num armário, porque não querem
deixar que as crianças tenham livre acesso aos livros, com medo de que
sejam rasgados, rabiscados, danificados. Ora, a criança, inicialmente,
faz isso mesmo. E só vai aprender a não fazer depois de ter feito uma
vez e de ser orientada para não fazer, é preciso formar a criança para
lidar com o livro, num processo de aprendizado. É uma questão complexa,
que não está sendo contemplada na formação de professoras para a
educação infantil. Aliás, o como trabalhar a literatura e como dar
acesso a livros de literatura na educação infantil e nas séries iniciais
do ensino fundamental ainda não é um componente importante na formação
de professores para esses ciclos.
A senhora mencionou a importância da leitura e da oralidade
na educação infantil. Que outras coisas podem ser trabalhadas nessa
etapa?
Esse contato com o mundo da leitura e da escrita está
acoplado, particularmente na educação infantil, com o desenvolvimento
da linguagem oral, pois é o momento em que a criança está ampliando seu
vocabulário, suas possibilidades de usos da língua, a aquisição de
estruturas sintáticas mais elaboradas. Então, o desenvolvimento da
linguagem oral é um dado importante para o desenvolvimento do letramento
e da alfabetização. A leitura de histórias pelas professoras não deve
ser apenas uma leitura seguida da pergunta se as crianças gostaram ou
não. É uma oportunidade de desenvolvimento da linguagem oral. Enquanto a
professora lê, vai fazendo com que as crianças façam previsões sobre os
rumos da história, analisem as ações das personagens. No fim da
leitura, a criança pode reconstruir o texto, de modo a trabalhar as
habilidades de compreensão, de inferência e de avaliação, que serão
importantes para a leitura individual, quando ela aprender a ler e a
escrever. A ampliação do vocabulário é fundamental, e a literatura
colabora demais para isso. A ampliação de visão que a leitura
proporciona à criança, numa fase em que ela está conhecendo o mundo,
também é importantíssima.
E na questão específica da alfabetização, como isso interage?
Essa
leitura de livros, não só os de literatura, mas o contato com a escrita
em seus diversos usos sociais em nossas sociedades letradas - afinal, a
escrita chega a todo lugar, mesmo às localidades rurais mais afastadas -
é fundamental, pois é uma espécie de precursor da leitura e da escrita.
Veja que não falei pré-requisito, uma palavra que devemos evitar, pois
acaba associando a educação infantil a um conceito inadequado, de que
essa etapa prepararia a criança para o ensino fundamental. Não é isso.
Essa era a visão que se tinha décadas atrás, a de que a criança
precisava adquirir certas condições para então aprender a ler e
escrever. Prefiro a palavra precursor, para designar certas habilidades,
conhecimentos, atitudes que a criança vai desenvolvendo e que serão
importantes para que aprenda a ler e a escrever, ou seja, são
precursores da alfabetização.
E quais seriam especificamente esses precursores da alfabetização?
Até
agora, mencionei os precursores do letramento, ligados ao
desenvolvimento da familiaridade com o livro, com a literatura e com
outros gêneros textuais, algo que muitas vezes começa antes de a criança
chegar à educação infantil escolar, formal. É um continuum, começa
quando a criança nasce num ambiente letrado. No plano da alfabetização,
do aprendizado da leitura e da escrita, é necessário primeiro delimitar o
que é próprio da educação infantil. Não é função da educação infantil
alfabetizar a criança, se entendermos por alfabetizar levar a criança a
terminar essa etapa já sabendo ler e escrever com alguma segurança. Não é
isso (embora isso possa acontecer, e tem efetivamente acontecido muitas
vezes). O que é próprio dessa etapa é o desenvolvimento de
conhecimentos e habilidades necessários para que a criança siga uma
trajetória de sucesso na aprendizagem da leitura e da escrita. Na
educação infantil, a criança deve pelo menos descobrir o princípio
alfabético: descobrir que, quando escrevemos, registramos o som das
palavras, e não a coisa sobre a qual estamos falando. Esse é o grande
salto que a educação infantil tem de ajudar a criança a dar. Aliás, é o
grande salto que a humanidade deu: descobrir que podemos transformar a
oralidade em algo visível, que é a escrita. A humanidade também passou
por essa fase de primeiro desenhar a coisa a que você está se referindo:
escrever casa já foi desenhar uma casa. A criança também passa por essa
fase, você pede: "escreva casa", ela desenha uma casa. O salto é a
descoberta de que quando se escreve não se representa a coisa,
representa-se o som da palavra que designa essa coisa. A humanidade
levou milênios para chegar a esse princípio alfabético, que a criança
deve descobrir rapidamente. É mais fácil, obviamente, pois já está
descoberto... Ela deve ser ajudada a identificar essa forma de tornar
visível a oralidade.
Como se faz para que a criança consiga isso?
É
trabalhando muito a consciência fonológica, a percepção de que a língua é
som. Porque a criança não tem consciência disso. Dou um exemplo
interessante e recorrente na Educação Infantil: você está, por exemplo,
desenvolvendo atividades com palavras que comecem com a mesma sílaba,
como panela, pato, página. A gente faz jogos com as crianças, para que
encontrem palavras que comecem igual. Muitas vezes propõe-se um jogo em
que um barquinho é lançado de criança para criança, carregando palavras
começadas com determinada sílaba. Com MA, por exemplo, e citamos uma:
maçã. E as crianças falam: "abacaxi, banana, pêra". Por quê? Porque as
crianças fazem uma associação não com o som da palavra maçã, mas pensam
em outras frutas. Enquanto a criança não descobrir que palavras são
sons, como poderão se alfabetizar, se têm de escrever registrando os
sons da palavra? Daí a importância da consciência fonológica nessa fase,
entendida como consciência dos sons de palavras, de sílabas. Para isso
as professoras podem brincar com parlendas, que facilitam colocar o foco
no som - e aí quanto menos sentido a parlenda tenha, melhor, para
forçar a criança a prestar atenção nesse aspecto. Outra boa alternativa é
brincar com rimas, o que também ajuda a prestar atenção no som.
Essa dimensão lúdica é muito importante, não?
É
fundamental. Falam muito que, ao trabalhar essas coisas na Educação
Infantil, se esquece de que é uma etapa em que as crianças devem
brincar, jogar etc. Eu não diria isso. A Educação Infantil é para que a
criança se desenvolva socialmente e cognitivamente de forma lúdica. O
que também é importante nas séries iniciais do ensino fundamental.
Pensam que, se você trabalha com letramento e alfabetização, está
tirando o tempo da brincadeira. Mas essas atividades são lúdicas! devem
ser lúdicas! Os exemplos que dei anteriormente, como a ida à biblioteca,
a leitura de livros, a leitura de histórias, as atividades com os sons
das palavras... a criança adora tudo isso, é um brinquedo para ela, isso
é lúdico. E a alfabetização é lúdica também. Esse desenvolvimento da
consciência fonológica deve ser feito por meio de jogos, que ao mesmo
tempo podem ser precursores da alfabetização.
Sob esse aspecto, a educação infantil comporta algum nível de
sistematização dessas aprendizagens, ou elas devem ser feitas no ensino
fundamental?
É difícil responder a isso, porque na verdade
trata-se de um continuum, não há - ou não deveria haver - uma quebra da
educação infantil para o ensino fundamental. Isso é algo em que o nosso
sistema de ensino tem de insistir. Houve reação de muita gente quando se
estendeu o ensino fundamental às crianças de seis anos, idade em que
elas ainda estavam na educação infantil. Muitos reclamaram e ainda
reclamam, por achar que é um absurdo que crianças de seis anos venham a
ser alfabetizadas quando elas ainda estariam na fase da brincadeira.
Essa é uma concepção inadequada, porque na verdade não há essas quebras
no desenvolvimento da criança. Em todas as fases da vida, o
desenvolvimento se dá numa linha de continuidade. E crianças chegam em
níveis diferentes de desenvolvimento aos cinco, seis ou sete anos. É
preciso haver sistematização e sequenciação, ou seja, um processo
seqüente em que a criança desenvolve a consciência fonológica - e
precisamos ajudá-la para isso, pois depois ela precisa desenvolver a
consciência fonêmica, que depende da primeira. É preciso ir,
sequencialmente, relacionando os sons da palavra, percebidos por meio de
atividades de consciência fonológica, às letras do alfabeto. Ou seja,
não são etapas definidas de forma externa à criança, é um continuum, no
processo de desenvolvimento. Como também acontece no ensino fundamental e
na educação em geral. Nesse sentido, a pesquisa da [psicolinguista]
Emilia Ferreiro trouxe uma grande contribuição acerca do desenvolvimento
da criança no processo de apropriação do sistema alfabético, mostrando
as fases pelas quais ela passa. Começa icônica, o que corresponde à
fase da humanidade em que a escrita era desenho; depois a criança começa
a perceber que a escrita não é desenho, compreende que são formas
específicas, as letras, e começa a escrever registrando letras,
aleatoriamente; aos poucos vai descobrindo que há uma correspondência
entre sons e letras, e começa a registrar com letras as sílabas, já
tendo percebido que a palavra é feita de pequenos "pedaços", até que
perceba que dentro de cada "pedaço" há fonemas que as letras
representam. Essa última fase é a mais difícil, e vai acontecer, em
geral, no início do ensino fundamental. Para ajudar a criança nesse
processo, é preciso sequenciar e sistematizar atividades. Não creio em
nenhuma educação que não seja sistematizada e seqüenciada.
Quais as habilidades e conhecimentos fundamentais o professor da Educação Infantil deve ter para ajudar seus alunos nessa fase?
Deve
ter, sobre certos temas, conhecimentos tão ou até mais sólidos do que
professores do ensino médio. Porque ele deve simplificar sem falsificar.
Quem é capaz de fazer isso? Quem domina muito bem os conteúdos. E não
só conteúdos. Por exemplo, como desenvolver o gosto da criança pela
leitura e pela literatura se a própria professora não tem esse gosto? E,
mais do que isso, se não sabe interpretar um texto, mesmo um texto
infantil? Se não domina estratégias de leitura? Na minha experiência com
a formação de professoras, tenho tido de ensinar o que é uma 4ª capa de
livro, uma lombada, um sumário. Elas não se dão conta de que é preciso
dizer à criança em que direção folhear um livro, que é necessário
conscientizá-las de convenções que elas, professoras, já internalizaram e
acham que são naturais. Isso dando um exemplo simples, sem falar da
necessidade de inserir a criança nos mundos natural e social, coisas que
dependem de conhecimentos básicos de sociologia, história, geografia,
ciências, de matemática. Por exemplo, da mesma maneira que, em relação à
alfabetização, na Educação Infantil se orienta a criança para que
chegue ao conceito de princípio alfabético, deve-se orientar a criança
para que chegue ao conceito de princípio numérico. As professoras não
são formadas para isso. Elas teriam de ser boas leitoras, de ter boa
base de teorias da leitura, de conhecer literatura infantil e suas
metodologias de trabalho, de conhecer as relações entre fonemas e
letras, fonemas e grafemas, de conhecer psicolingüística e psicologia
cognitiva, necessárias para orientar a criança em seu processo de
aprendizagem, em particular no caso da língua escrita. E os professores
não estão sendo formados assim, nem para a Educação Infantil, nem mesmo
para o fundamental. O problema básico da educação no Brasil é a formação
dos professores. Para as séries finais do ensino fundamental, bem ou
mal os professores são formados em conteúdos. Mas, para a Educação
Infantil e para as séries iniciais do fundamental, a formação se dá em
cursos que não incluem os conteúdos que serão desenvolvidos nessas
etapas nem os fundamentos psicocognitivos da aprendizagem desses
conteúdos e sua tradução em uma pedagogia adequada. Essa é a grande
ausência na formação de professores. E não estou vendo essa questão ser
atacada por processos eficientes.
Ou seja, é preciso reformular os currículos da graduação em pedagogia...
É
claro. E é complicado, pois é preciso também uma mudança de postura dos
formadores, para que formem alunos dos cursos de pedagogia com o
objetivo de torná-los bons professores. Do jeito que estão, os cursos
não estão formando adequadamente professores para a Educação Infantil e
para as séries iniciais do ensino fundamental. Há poucos cursos de
pedagogia que formam alfabetizadores. Há pouquíssimos que têm literatura
infantil em suas grades curriculares,. Só por esses dois exemplos, se
vê que as professoras não são preparadas adequadamente. Elas mesmas
reconhecem isso. Ouço dizerem com frequência: "mas ninguém me ensinou
isso". É verdade, não faz parte do currículo da formação. No caso do
letramento, sem um mínimo conhecimento de literatura infantil, não há
como trabalhar com literatura. É preciso saber, por exemplo, como
trabalhar com um livro de imagens com crianças, ou quais as habilidades
cognitivas e habilidades de leitura que um livro de imagens pode
desenvolver.
Link da Entrevista: Magda Becker Soares
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