Para uns, ela é uma droga perversa.
Para outros, a 'tábua de salvação'.
Texto de Isabela Gardenal, publicado em 05/08/2013 no Portal UNICAMP.
Trata-se da ritalina, o metilfenidato, da família das
anfetaminas, prescrita para adultos e crianças portadores de transtorno
de deficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Teria o objetivo
de melhorar a concentração, diminuir o cansaço e acumular mais
informação em menos tempo. Esse fármaco desapareceu das prateleiras
brasileiras há poucos meses (e já começou a voltar), trazendo
instabilidade principalmente aos pais, pela incerteza do consumo pelos
filhos.
Crédito da Imagem: Antônio Scarpinetti |
Ocorre que essa droga pode trazer dependência química, pois tem o
mesmo mecanismo de ação da cocaína, sendo classificada pela Drug
Enforcement Administration como um narcótico. No caso de consumo
pela criança, que tem seu organismo ainda em fase de formação, a
ritalina vem sendo indicada de maneira indiscriminada, sem o devido
rigor no diagnóstico. Tanto que, no momento, o país se desponta na
segunda posição mundial de consumo da droga, figurando apenas atrás dos
Estados Unidos. Como acontece com boa parte dos medicamentos da família
das anfetaminas, a ritalina 'chafurda' a ilegalidade, com jovens
procurando a euforia química e o emagrecimento sem dispor de receita
médica. Fala-se muito que, se não fizer o tratamento com a ritalina, o
paciente se tornará um delinquente. "Mas nenhum dado permite dizer isso.
Então não tem comprovação de que funciona. Ao contrário: não funciona",
critica a pediatra Maria Aparecida Affonso Moysés, professora titular
do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da
Unicamp. “A gente corre o risco de fazer um genocídio do futuro. Mais
vale a orientação familiar”, encoraja a pediatra, que concedeu
entrevista, a seguir, ao Portal Unicamp.
Portal Unicamp – Há pouco tempo, faltou distribuição de ritalina no mercado brasileiro. Como essa lacuna foi sentida?
Cida Moysés –
Não sabemos verdadeiramente o motivo de faltar o medicamento, mas isso
criou uma instabilidade nas pessoas. As famílias ficaram muito
preocupadas e entraram em pânico, com medo de que os filhos ficassem sem
esse fornecimento. Isso foi sentido de um modo muito mais intenso do
que com outros medicamentos que de fato demonstram que sua interrupção
seria mais complicada que a ritalina. São os casos dos medicamentos para
diabetes ou hipertensão. Apesar de não conhecermos a razão dessa falta
do medicamento, sabemos das estratégias de mercado para outros produtos
como o açúcar e o café que faltam no supermercado e, por isso,
também para os medicamentos que faltam na farmácia. Quando somem das
prateleiras, eles criam angústia. No entanto, em geral, retornam mais
tarde. E mais caros, é óbvio.
Portal Unicamp – O que é a ritalina? Como ela age?
Cida Moysés –
A ritalina, assim como o concerta (que tem a mesma substância da
ritalina – o metilfenidato, é um estimulante do sistema nervoso central -
SNC), tem o mesmo mecanismo de ação das anfetaminas e da cocaína, bem
como de qualquer outro estimulante. Ela aumenta a concentração de
dopaminas (neurotransmissor associado ao prazer) nas sinapses, mas não
em níveis fisiológicos. É certo que os prazeres da vida também fazem
elevar um pouco a dopamina, porém durante um pequeno período de tempo.
Contudo, o metilfenidato aumenta muito mais. Assim, os prazeres da vida
não conseguem competir com essa elevação. A única coisa que dá prazer,
que acalma, é mais um outro comprimido de metilfenidato, de anfetamina.
Esse é o mecanismo clássico da dependência química. É também o que faz a
cocaína.
Portal Unicamp – Quando a ritalina é indicada?
Cida Moysés –
Para quem indica, é nos casos com diagnóstico de TDAH. Eu não
indico. Para esses médicos, entendo que é necessário traçar uma relação
custo-benefício: quanto ganho com esse tratamento em termos de vantagens
e de desvantagens. Sabe-se que é uma droga que possui inúmeras reações
adversas, como qualquer droga psicoativa. Considero extremamente
complicado usar uma droga com essas reações para melhorar o
comportamento de uma criança. Qual é o preço disso?
Portal Unicamp – Quais são os sintomas principais?
Cida Moysés –
As reações adversas estão em todo o organismo e, no sistema nervoso
central então, são inúmeras. Isso é mencionado em qualquer livro de
Farmacologia. A lista de sintomas é enorme. Se a criança já desenvolveu
dependência química, ela pode enfrentar a crise de abstinência. Também
pode apresentar surtos de insônia, sonolência, piora na atenção e na
cognição, surtos psicóticos, alucinações e correm o risco de cometer até
o suicídio. São dados registrados no Food and Drug Administration
(FDA). São relatos espontâneos feitos por médicos. Não é algo
desprezível. Além disso, aparecem outros sintomas como cefaleia, tontura
e efeito zombie like, em que a pessoa fica quimicamente contida em si mesma.
Portal Unicamp – Não é pouca coisa...
Cida Moysés –
Ocorre que isso não é efeito terapêutico. É reação adversa, sinal de
toxicidade. Além disso, no sistema cardiovascular é possível ter
hipertensão, taquicardia, arritmia e até parada cardíaca. No sistema
gastrointestinal, quem já tomou remédio para emagrecer conhece bem essas
reações: boca seca, falta de apetite, dor no estômago. A droga
interfere em todo o sistema endócrino, que interfere na hipófise. Altera
a secreção de hormônios sexuais e diminui a secreção do hormônio de
crescimento. Logo, as crianças ficam mais baixas e também essa droga age
no peso. Verificando tudo isso, a relação de custo-benefício não vale a
pena. Não indico metilfenidato para as crianças. Se não indico para um
neto, uma criança da família, não indico para uma outra criança.
Portal Unicamp – Criança não comportada é um problema social?
Cida Moysés –
Está se tornando. E não vai se resolver colocando um diagnóstico de uma
doença neurológica ou neuropsiquiátrica e administrando um psicotrópico
para uma criança.
Portal Unicamp – Qual seria o tratamento então?
Cida Moysés –
Um levantamento de 2011, publicado pelo equivalente ao Ministério da
Saúde nos Estados Unidos, envolve uma pesquisa feita pelo Centro de
Medicina baseado em Evidências da Universidade de McMaster, no Canadá,
que analisou todas as publicações de 1980 a 2010 sobre o tratamento de
TDAH. O primeiro dado interessante foi que, dos dez mil trabalhos que
provaram que o metilfenidato funciona, é seguro, apenas 12 foram
considerados publicações científicas. Todo o resto foi descartado por
não preencher os critérios de cientificidade. Esse é um aspecto muito
importante. Dos 12 trabalhos restantes, o que eles encontraram foi que a
orientação familiar tem alta evidência de bons resultados, e o
medicamento tem baixa evidência. Isso não quer dizer que a família seja
culpada. É preciso orientá-la como lidar com essa criança. Além disso,
os dados dessa pesquisa sobre rendimento escolar foram inconclusivos,
assim como não há nenhum dado que permita dizer que melhora o
prognóstico em longo prazo. Fala-se muito que, se a criança não for
tratada, vai se tornar uma dependente química ou delinquente. Nenhum
dado permite dizer isso. Então não tem comprovação de que funciona. Ao
contrário: não funciona. E o que está acontecendo é que o diagnóstico de
TDAH está sendo feito em uma porcentagem muito grande de crianças, de
forma indiscriminada.
Portal Unicamp – Dê um exemplo.
Cida Moysés –
Quando se fala em 5% a 10% de pessoas com determinado problema, o
conhecimento médico exige que se assuma que isso é um produto social, e
não uma doença inata, neurológica, como seria o TDAH, e muito menos
genética. Não dá para pensar em porcentagens. Em Medicina, sobre doenças
desse tipo fala-se em 1 para 100 mil ou em 1 para 1 milhão. Então, é
algo socialmente que vem se produzindo. Quando digo isso, de novo, não
estou dizendo que a família é a culpada. Pelo contrário, é um modo de
viver que estamos produzindo.
Portal Unicamp – Quem está sendo medicado?
Cida Moysés – São
as crianças questionadoras (que não se submetem facilmente às regras) e
aquelas que sonham, têm fantasias, utopias e que ‘viajam’. Com isso, o
que está se abortando? São os questionamentos e as utopias. Só vivemos
hoje num mundo diferente de 1.000 anos atrás porque muita gente
questionou, sonhou e lutou por um mundo diferente e pelas utopias.
Quando impedimos isso quimicamente, segundo a frase de um psiquiatra
uruguaio, “a gente corre o risco de estar fazendo um genocídio do
futuro”. Estamos dificultando, senão impedindo, a construção de futuros
diferentes e mundos diferentes. E isso é terrível.
Portal Unicamp – Na França, o TDAH é praticamente zero. A que se deve isso?
Cida Moysés – Isso se deve a valores culturais, fundamentalmente.
Portal Unicamp – Isso em países desenvolvidos?
Cida Moysés –
Não necessariamente. Ninguém pode dizer que os EUA não sejam
desenvolvidos. Não obstante, o país é o primeiro grande consumidor
mundial da ritalina, da onde irradia tudo. O Brasil vem logo em seguida,
como segundo consumidor mundial. Ao contrário do que se propaga, de que
a taxa de prevalência é a mesma em todos os lugares, isso não é
verdade. Varia de 0,1% a 20%, conforme o estudo da Universidade McMaster
do Canadá. Varia de acordo com valores culturais, região geográfica,
época e conforme o profissional que está avaliando. Há trabalhos que
mostram, por exemplo, que médicas diagnosticam mais TDAH em meninos e
que médicos mais em meninas, provavelmente por uma falta de
identificação. Alguns trabalhos mostram que crianças pobres têm mais
chances de receber o diagnóstico. Estamos falando de uma Era dos
Transtornos – uma epidemia dos diagnósticos. A França tem uma
resistência muito grande a isso por uma questão de formação de médicos,
de valores da sociedade. Lá eles têm um movimento muito grande
desencadeado por médicos, muitos deles psiquiatras, que se chama collectif pas de 0 de conduite. Esse movimento surgiu como reação à lei que
propunha avaliar o comportamento de todas as crianças até três anos de
idade. Era um modelo que pegava especificamente pobres e imigrantes. O
movimento conseguiu derrubar tal lei.
Portal Unicamp – Existe no Brasil alternativa diferente da medicalização, da visão organicista?
Cida Moysés –
Temos uma articulação mais recente que é o Fórum sobre Medicalização da
Educação e da Sociedade, o qual eu e o Departamento de Pediatria da
FCM-Unicamp integramos. O nosso Departamento é o seu membro fundador,
tendo mais de 40 entidades acadêmicas profissionais e mais de 3.000
pessoas físicas no Brasil, que estão buscando difundir as críticas que
existem na literatura científica sobre isso. Além do mais, procuramos
construir outros modos de acolher e de atender as necessidades das
famílias dos jovens que vivenciam e sofrem com esses processos de
medicalização. Em novembro, a Unicamp promoverá um Fórum Permanente
sobre Medicalização da Vida, que irá abordar essas questões de
medicalização e de patologização da vida. Todos estão convidados.
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